Em um recente e interessante artigo (1) sobre o fracasso do transporte público dos EUA, que abandonou os serviços de ônibus e preferiu focar em carros particulares, o autor citou como exemplos de sucesso os sistemas de Curitiba e Londres. Como tive a oportunidade de andar de ônibus nestes três locais, vou aqui fazer algumas considerações sobre o tema.
Antes, porém, convém destacar que a necessidade de maior uso de ônibus nas médias e grandes cidades não está ligado apenas ao aspecto do social e ambientalmente correto – acontece que, simplesmente, há pouco espaço para tantos veículos particulares! As raras vagas disponíveis nas calçadas são para carga/descarga, motocicletas, pessoas com deficiência e idosos; e os estacionamentos costumam cobrar preços salgados para quem insiste em usar o carro. Se fossem retirados todos os veículos particulares das ruas e as pessoas usassem apenas ônibus, taxi e carros de aplicativos; ainda assim haveria intenso movimento de veículos, pois inúmeros serviços indispensáveis usam automóveis: correios, ambulâncias, entrega de encomendas, transporte escolar, polícia, caminhão de lixo, caminhões de mudanças, veículos de carga e descarga de lojas, bares, restaurantes, floriculturas, padarias; carros funerários, veículos com materiais de construção civil, transporte de valores, Corpo de Bombeiros, etc.
Em vários casos, a abertura de novas ruas ou ampliação das existentes, funciona apenas temporariamente na redução de congestionamentos e do excesso de carros devido a questão da “demanda induzida”, isto é, se a via está disponível, a população vai usar, porque mais pessoas decidirão viajar ou porque serão feitas viagens além das necessárias. (2)
Para desestimular o uso de veículos particulares, várias metrópoles como Londres, Singapura, etc. cobram taxa de congestionamento para os carros que rodam em áreas centrais. A população deve ponderar sobre a real necessidade de realizar determinados trajetos, em certos horários. A oferta de outras opções de deslocamentos, principalmente de um bom serviço de ônibus, promove resultados satisfatórios para as pessoas.
Dentre as opções ambientalmente festejadas para o transporte urbano, o carro elétrico tem surgido como alternativa para diminuir a emissão de gases de efeito estufa. Enquanto está rodando, o carro elétrico não libera gases danosos na atmosfera, diferente dos movidos a diesel e gasolina. Porém durante a produção dos carros elétricos, na confecção das baterias e instalação da extensa rede de carregamento não são usadas tecnologias limpas, mas muitas vezes as baseadas em combustíveis fósseis.Outro aspecto a ser considerado é que o carro elétrico transporta poucas pessoas e não diminui o trânsito. Assim, os ônibus elétricos ou movidos a combustíveis limpos aparecem como uma solução melhor, pois além de menos emissões, aliviam as ruas por transportar mais pessoas. (3)
SISTEMA DE ÔNIBUS NOS EUA (1)
O transporte público americano enfrenta uma fase difícil. Milhões de pessoas que precisam se deslocar diariamente e não conseguem arcar com os custos de possuir um carro próprio têm que usar ônibus antigos, que rodam com pouca frequência, não atendem inúmeros lugares e oferecem um serviço de má qualidade.
Há um século atrás, o sistema de ônibus americano funcionava satisfatoriamente, mas, com as facilidades e grande oferta da pujante indústria automobilística, vários passageiros do ônibus se tornaram motoristas de carros. Simultaneamente, determinações governamentais estabeleceram taxas e impostos às empresas de transporte público, enquanto investiam em uma extensa rede de vias expressas para os veículos particulares. Para piorar, foram aprovadas leis de zoneamento que estimularam a formação de bairros residenciais em subúrbios e periferias com o trânsito orientado para o uso de carros.
Sem subsídios, os ônibus passaram a dividir as ruas com milhares de veículos particulares, atendendo principalmente a população não branca, com menor poder aquisitivo e moradora de bairros centrais. Embora algumas cidades conseguissem manter um sistema de ônibus satisfatório, é necessário a reestruturação das políticas de transporte público, oferecendo subsídios que proporcionem serviços confiáveis e atraiam novos usuários.
ANDANDO DE ÔNIBUS NOS EUA
Há uns anos atrás decidi levar minha mãe e minha filha para conhecer Nova York. Como os preços dos hotéis estavam muito altos, aceitei a sugestão do meu professor americano e reservei um agradável hotel, com preço justo, em New Jersey, cidade vizinha, e diariamente um miniônibus do hotel nos deixava no terminal de ônibus, onde pegávamos um intermunicipal até a estação, que nos deixava no coração de Manhattan.
Para a minha surpresa percebi que o sistema de ônibus deles era bem inferior ao que conhecia do Brasil. Os ônibus antigos, pouco confortáveis e no terminal de NY havia tantas grades metálicas nos corredores, que sempre me lembrava do filme Alcatraz: Fuga Impossível. Em um amplo espaço redondo central ficavam as cabines das bilheterias, onde se formavam algumas filas. Os ônibus eram pontuais, tempo de viagem razoável, sinalização e atendimento interpessoal ruim. O custo-benefício era muito bom, e como nos divertíamos com qualquer banalidade, os trajetos de ônibus nos renderam boas histórias. Depois meu professor americano confirmou que o serviço de ônibus nunca foi o forte deles.
Recentemente fiz uma viagem mais longa para os EUA e, para diminuir despesas, resolvi fazer o trecho de Washington a Nova York de ônibus. Financeiramente foi uma ótima opção, mas constatei que a qualidade do ônibus continuava ruim. Embora o trecho ligasse duas cidades importantes e aparentemente era operado por uma empresa regular, não clandestina, a viagem foi estranha. O ônibus era antigo, sem banheiro, e o embarque aconteceu em rua sem qualquer sinalização que indicasse que lá haveria parada de ônibus.
SISTEMA DE ÔNIBUS EM LONDRES
Londres possui uma das maiores redes de transporte público do mundo, onde a administração integrada contribui para atender as reais necessidades dos usuários. TfL Transport for London é o órgão governamental responsável pela maioria das redes de transportes da cidade. Isto inclui metrô, algumas ferrovias, serviços de ônibus, taxis, principais rotas de rodovias, trens urbanos, fornecimento de bicicletas e serviços fluviais.
Até meados de 2022 a frota da cidade contabilizava 8795 ônibus, onde 70% com idade inferior a 10 anos, e 10% de ônibus elétricos. Os famosos ônibus de dois andares, um dos modos mais baratos de conhecer a cidade, representam 70% da frota. (4)
Com mais de 400 rotas diferentes e 15.000 pontos, a melhor maneira de escolher um ônibus é checar no próprio ponto quais rotas passam por lá. As principais linhas de ônibus funcionam 24 horas por dia. Também há várias linhas de ônibus noturnas que funcionam desde o horário de fechamento do metrô até o início dos serviços convencionais dos ônibus. As linhas noturnas passam com maior frequência às sextas-feiras e aos sábados para atender o maior movimento de usuários.
Nos ônibus de Londres não se aceita dinheiro e a passagem só pode ser paga com cartão. O melhor e mais econômico modo de usar o transporte público da cidade é com o Oyster Card. É um cartão magnético recarregável, que varia de acordo com a necessidade do usuário: abrangência geográfica que pode ser percorrida e o número de dias em que se usa o cartão.
ANDANDO DE ÔNIBUS EM LONDRES
Há uns anos atrás consegui estudar em Londres, e além do trajeto da casa até a escola, também ia de ônibus para vários lugares. Londres construiu o primeiro metrô do mundo e embora algumas estações tenham sido modernizadas, várias ainda conservam a antiga estrutura estreita e em arco, com longas escadarias que parecem nos levar a uma viagem ao centro da Terra. Em horários de pico a situação complicava um pouco mais e a desagradável sensação de confinamento me fazia preferir o ônibus ao metrô.
Diferente do Brasil, nunca precisei perguntar qual ônibus me deixaria no destino, pois nos pontos existem desenhos esquemáticos muito simplificados que indicam os locais de parada de cada linha. E existem muitos pontos de ônibus! Geralmente também há indicação dos horários que os ônibus chegam no ponto onde você está. A sinalização é padronizada e muito boa. Não me recordo de ter visto ponto de ônibus sem cobertura ou mal iluminado; também não vi bancos. Em alguns pontos há letreiros luminosos avisando o horário de chegada dos próximos ônibus, que parecem não se atrasar nunca. Embora não me conste de eu ter andado em algum ônibus moderno, no interior de vários deles há sinal luminoso indicando a próxima parada e por vezes também é avisado em voz humana.
A frequência dos ônibus não era tão boa quanto do metrô. Porém, embor, o tempo de viagem fosse maior, considerando o não enclausuramento subterrâneo e a boa qualidade dos serviços, o ônibus me atendia bem. Além disso, pelas janelas eu podia ver o movimento da cidade e os belíssimos carros de alto luxo que rodavam pelas ruas.
A cidade é muito convidativa para quem gosta de caminhar. : ótima sinalização, iluminação adequada, calçadas bem conservadas e relativamente amplas; discretas fachadas dos imóveis, e praças e parques agradáveis.
SISTEMA DE ÔNIBUS EM CURITIBA
Durante a década de 70, enquanto o mundo investia em automóveis, o visionário prefeito de Curitiba, Jaime Lerner, implantava um inovador sistema de ônibus que seria imitado mundo afora.
Embora hoje seja comum, na época tudo no sistema curitibano era novidade: a maior velocidade dos ônibus que circulavam em vias exclusivas; as plataformas elevadas que permitiam agilidade e segurança no embarque, que ocorriam no mesmo nível do ônibus; e a compra das passagens antecipada na estação, fora do ônibus.
As estações em formato de tubo passaram a ser fechadas, permitindo integrar o sistema de ônibus com a compra de apenas uma passagem. Os grandes ônibus biarticulados transportavam um número maior de pessoas. O sistema de ônibus se tornou prioridade no planejamento urbano e a hierarquização de vias passou a direcionar os diferentes fluxos de ônibus: expressos, ligeirinhos, interbairros, alimentadores, etc.
Diferente do metrô, o transporte por ônibus oferece mais flexibilidade podendo-se criar novas linhas em pouco tempo, possui baixo custo e rapidez de implantação. Atualmente, com ônibus de maior capacidade para o transporte em massa, o sistema curitibano é conhecido como BRT Bus Rapid Transit, que “metroniza” os ônibus.
ANDANDO DE ÔNIBUS EM CURITIBA
No passado, sempre viajávamos de fusca para a praia e parávamos em Curitiba para visitar as tias. Elas amavam o Jaime Lerner e falavam com orgulho dos novos ônibus articulados que rodavam por vias exclusivas e das modernas estações em formato de tubo. Apesar de conhecer a cidade, vivíamos momentos de tensão quando meu pai, por engano, entrava com o fusca nas vias exclusivas dos ônibus expressos. Vários não curitibanos viviam aquelas fortes emoções. E andar dentro dos ônibus também não era para amadores, a velocidade bem maior que dos ônibus comuns exigia habilidades extras dos usuários novatos.
Durante um período, tive que ir com frequencia a uma cidade vizinha de Curitiba, e fazia o trajeto de táxi/uber. Finalmente descobri que um ônibus expresso fazia a minha rota. Assim, passei a chegar mais rápido, por um valor irrisório, com conforto e descendo em um ponto muito próximo ao meu destino.
MUDANÇA DOS TEMPOS
Parece estar saindo de moda marcar o rito de passagem para a idade adulta com a posse de um carro. Também está menos estigmatizada a ideia de que andar de ônibus está relegado apenas aqueles com menor poder aquisitivo. A oferta de bons serviços de ônibus naturalmente se torna uma opção atraente em várias situações: quando complementa trajetos de metrô e trem urbano, em áreas centrais, em trajetos longos e específicos (aeroportos, universidades, etc.), passeios turísticos, etc. Ônibus expressos que circulam em corredores exclusivos também são ótimas alternativas para áreas movimentadas.
Não se pretende aqui promover o ônibus à condição de oitava maravilha do mundo, tampouco esquecer a dura realidade de inúmeras pessoas que se comprimem diariamente em extensas viagens de casa para o trabalho. Pontos de ônibus escuros em locais ermos são inseguros, longas esperas de ônibus em finais de semana e feriados são um transtorno, pessoas com limitações físicas têm mais dificuldades para usar ônibus, etc.
Por melhor que seja o serviço de ônibus, ele não oferece a autonomia e independência de um veículo particular. Andar de ônibus tem glamour zero, é difícil resistir à sedução das propagandas de carros; e possuir um belo carro continuará sendo símbolo de prestígio e poder ainda por um longo tempo. Porém é importante que empresas e administração pública invistam em bons serviços de ônibus, entregando ao usuário confiabilidade, segurança, preço justo, e, principalmente, que seja uma boa opção de deslocamento.
Silvia Guimarães
Leia também: https://fascinadosportransportes.com.br/onibus-de-madrid/
Referencias
1.Nicholas Dagen Bloom. Why the humble city bus is the key to improving US public transit. Publicado em 02. março.2023. The Conversation. https://theconversation.com/why-the-humble-city-bus-is-the-key-to-improving-us-public-transit-199052
2.Department for Transport Rand Europe. Latest Evidence on Induced Travel Demand: an Evidence Review. Manchester. Maio.2018
3.The myth of electric cars: Why we also need to focus on buses and trains. The Conversation. Publicado em 21. outubro. 2020.
4.TfL Transport for London. Bus Fleet Audit. Londres. Publicado em março.2022. Disponível em: https://content.tfl.gov.uk/fleet-annual-audit-report-31-march-2022.pdf